Parte 1: Plantar
Quando cheguei na comunidade Jamaraquá para dar aulas de inglês, já me pulou de cara o motivo pelo qual o mundo inteiro está de olho na área de Alter do Chão. Não é só pela beleza natural e nem por aqui se encontrar o maior aquífero de água doce do mundo; é pelo motivo que a riqueza das pessoas que povoam a Amazônia continua a inspirar, e de uma maneira mais sutil, mesmo sustentar a esperança do mundo.
Já nos primeiros momentos de contato com um sereno pôr do sol à beira do rio Tapajós, pensei que apesar de um mundo que cada vez mais aparenta com essa tal esperança já no fim, o universo no qual fui inserido de cara e sem dó parecia continuar existindo independente de tudo isso. Mas, quando me voltei para dentro, além das paisagens e do verde imensurável, entendi que não era bem verdade que toda a angústia de uma vida desaparecera em um piscar de olhos apenas por eu estar em um local mais descentralizado. Eu entendi que não estava lá para dar recursos à aqueles que precisavam, e nem para uma troca de valores e culturas como esperava, mas para ressignificar minha própria visão sobre o Ser. Seria como andar na Lua, se isso fosse uma experiência estranhamente familiar. A Amazônia é um lugar no qual é facilitado o entendimento de que origem do sofrimento está dentro de nós, e não em experiências impermanentes no mundo externo ou no sentimento de impotência perante ao declínio da sociedade. Mas, antes de definir esses espectros, é importante dizer que a oralidade com a qual as histórias das milhares de pessoas que habitaram e habitam o local não pode ser descrita com precisão nas palavras escritas. É possível até tentar classificá-la, mas o brilho de cada vivência individual se perde na tentativa de tentar simplificar algo que foi feito para ser vivido. Por isso, é um desafio até escrever sobre a minha experiência, mas também é pela mesma razão que ela foi tão importante.
Como um começo, também é necessário ponderar que não deveria caber a todos que habitam esse universo chamado Amazônia contar para nós de fora que aquele local é palco da maior batalha territorial, cultural e humanitária da história desse ciclo da humanidade- eles estão claramente ocupados em vivenciar essa luta que se ocupa muito além de suas próprias comunidades, mas dentro de cada indivíduo. Então, é justo que também não caiba a mim complicar essa tarefa de descrever o que vivi e também tentar proporcionar algum tipo de ângulo de entrada sobre o conflito. Aprendi que muito na Amazônia é sobre simplificar, então, vá e veja por si mesmo.
Na cidade, tudo é muito diluído. O mundo vira uma massa cinza de cultura, e perde-se a individualidade, que ironicamente é o propósito original de se viver em um lugar com este- trabalhe perpetuamente apenas por você e pelos “seus”, e ganhe a recompensa material em gratificação instantânea.
Aqui, as coisas não funcionam dessa forma; assim como a própria floresta, as sementes de tudo o que se planta tem que passar pelo processo gradual das diferentes estações para se fertilizar, sendo que às vezes podem nem vingar. Nada é feito com o intuito imediato da “colheita,” e o próprio ato de plantar, trabalhar, e viver essa luta, já é a grande conquista. Diferente da cidade, aqui os lados são bem claros: um, cinza, de dúvida, e falta de auto-conhecimento/auto-realização; o de desmatamento, de perda da conexão com espírito e genocídio direto ou indireto de cultura; o outro, verde, de evolução, o do curso natural da vida, de autovalorização e preservação. Como mencionei, é perceptível como os dois espectros estão presentes dentro de cada indivíduo nas comunidades amazônicas- nada é apenas preto ou branco. É fácil assistir como a paz que vem com a própria riqueza de estar vivo é constantemente assediada pelo ritmo desenfreado da colonização- o ritmo do ego. Todos sabemos que esse processo gera uma ansiedade que pode até ser uma característica puramente humana, mas a falta de perspectiva para o amanhã não é algo natural. Esse peso de ter que lidar com o destino do mundo, como pesticida, é infiltrado na terra que naturalmente floresce para a simplificação da vida dentro de cada um de nós, de tudo o que sempre esteve aqui. Eu sei que disse que não me aprofundaria no assunto, mas é impossível contar a experiência de entrar pela primeira vez na Amazônia sem uma certa “raspa do limão” do que significa este conflito intrínseco que se manifesta de maneira tão visível quando se está lá. A floresta nos lembra que sempre soubemos quais eram os lados, quando, como ela mesma, respiramos e inspiramos o que está dentro de cada um de nós- assim, sem mesmo pensar. Acho que é isso: pensar. A própria mente humana virou o que nos prejudica.
Estava tudo planejado, pelo menos era o que eu pensava. Começaria as aulas falando um pouco de mim e do propósito da minha visita. Diria: “my name is Tom” - meu nome é Tom, e perguntaria em seguida “what is your name?” para cada aluno- qual é seu nome, explicando o significado de cada frase? Em seguida, seguiria o conteúdo do livro didático que trouxera comigo até o fim do curso, ocasionalmente abrindo espaço para algo mais flexível se fosse necessário.
É óbvio que, já a partir das primeiras sessões, quanto mais pensava e planejava qual seria o conteúdo, levando em conta quantas pessoas iriam, se haveria energia para iluminar a sala, e a precariedade dos recursos em geral, me dava de cara com uma realidade que já devia estar esperando- a de que, devido a todas as questões e ao peso intrínseco que mencionei, ninguém de fato iria se dispor a aprender um conteúdo que, mesmo proporcionado de graça, não viesse de um lugar de conexão genuína com cada uma dessas pessoas. Essa necessidade me apareceu como oposta à maioria das propostas educacionais “modernas,” que muitas vezes se mascaram como individualizadas, mas acabam restringindo o aluno e professor à um conteúdo uniformizado que impossibilita o pensamento criativo em relação à interdisciplinaridade das matérias- esta era a maneira que funcionava a minha mente. Me perguntava: Como era possível? Como se pode fazer algo para si e ao mesmo tempo para o outro? Ainda não tenho certeza, mas o que posso dizer é que trabalhar na Amazônia é perceber que, de certa forma, fazer pelo outro é também fazer para si. A todo o momento que respirei o ar da floresta, seja nadando no rio, dormindo no meio do mato, onde “você não vê os animais, mas eles te veem,” brincando de todos os tipos de “pira-pega” com meus alunos, comendo farinha de mandioca com melancia (o pior é o que funciona) e o delicioso creme de cupuaçu, seja até ouvindo os cantos dos icônicos blocos de carnaval de Alter do Chão: os centenario, “Eu Não Dou Meu Quati” e “ A Jacu no Pau,” eu tive a certeza de que se, como eu, qualquer pessoa se dispor a romper velhas amarras e apenas viver o local, ela vai encontrar ali um novo lar.
Mas na vida, não é tudo creme de cupuaçu, e na Amazônia, que hoje é o centro do mundo, não podia ser diferente. Desde a primeira semana, a cada dia menos adultos apareciam nas aulas, e as minhas tentativas de abrir novas sessões nas comunidades próximas de Maguarí e São Domingos foram sem sucesso. À não ser as crianças, a semente que eu tentava tão apaixonadamente plantar parecia que não ia vingar… Foi então que, novamente, eu decidi parar, respirar, e apenas viver a mim mesmo, por um tempo.
Depois de alguns dias de pura reflexão, entendi que não adiantava eu regar as folhas da minha planta no que correspondia a espalhar a minha mensagem para mais comunidades se havia uma deficiência na própria semente. Afinal, o que era que eu tanto queria plantar? Daí que entrou o principal questionamento: Qual era a minha semente? Em outras palavras, qual era o motivo por trás do meu ensino?
Parte 2: Semear
O estado do sistema educacional é deplorável e conscientemente escolhe prejudicar aqueles que mais precisam de cuidado, mas não é sempre que nos perguntamos o porquê.
O curso natural da vida, e de tudo que se propõe a ser evolutivo, parte de uma relação que reflete a própria natureza da interdisciplinaridade das matérias (ou campo unificado) e do meio ambiente. Um exemplo: a abstração que estou mencionando, assim como o qualquer tipo de ensino, não vai “vingar” se conseguir abranger apenas seus próprios dogmas. Mesmo se o ensinamento já mirar se envolver além de sua própria disciplina, ele só vai adquirir um real significado à medida que procurar ver todos os que se dispõe a aprender como indivíduos que não necessariamente florescerão aderindo aos métodos escolhidos. Apenas assim é possível que a troca entre “discípulo” e “ mestre” aconteça de uma maneira genuína, pois sem essa maior flexibilidade do professor, não virá a verdadeira resposta do aluno através da própria ressignificação de suas relações com si mesmo e com seu meio. Qualquer conhecimento passado só é realmente válido se for além de si mesmo e reconhecer-se como resultado de conhecimentos milenares codificadas para conseguir penetrar no campo unificado da vida, e não um mero conglomerado de ideias de um indivíduo ou pequeno grupo retiradas de contexto que se limita de uma abordagem mais ampla. Em uma dessas culturas milenares: o Hinduísmo, este campo unificado é apenas uma outra palavra para tudo o que é constante na vida mesmo perante à possíveis tristezas, prazeres temporários, e principalmente, diante da dominação desses ciclos viciosos sobre eu, você e nós- que criamos o meio ambiente. Digo isso pois tive a sorte de me acompanhar na viagem uma escritura milenar de Yoga que li fervorosamente por duas semanas; se tratava de um guia para a possível libertação de velhos padrões prejudiciais da humanidade, um processo que só pode ser feito através da quebra dos respectivos ciclos individuais - de dentro pra fora. Estes ensinamentos que me pareciam tão sincrônicos com o meu estado mental, me forneciam, ao mesmo tempo, uma válvula de escape e um ângulo de penetração sobre toda a ansiedade que sentia por não acreditar que não estava fazendo o suficiente. Agora, tendo em vista esse tal campo unificado, via, no meu mundo interno, minha angústia transmutada em um instinto materno diante de cada aluno, mesmo que às vezes tenha sido apenas um. Com o tempo, essa atitude se mostrou ser apenas um reflexo; uma das “folhas” da árvore que era a minha relação com a própria Amazônia. Quanto mais eu me dispunha a lembrar do processo natural de parar, respirar, e aprender a me flexibilizar, mais ela cuidava de mim, me mostrando o caminho a cada dia- assim mesmo, quase sem pensar. Tudo foi ficando mais simples
Nas semanas seguintes de aula, restaram apenas as crianças. É claro que elas mostravam uma preferência especial para as brincadeiras, especialmente uma de pergunta e resposta na qual com a rapidez do voo dos pássaros Japiim passando sobre Centro de Atendimento onde as aulas aconteciam, se lançavam para apertar primeiro os “botões” feito de papel representando dois times, e na contagem de: “one, two, three…” responder primeiro perguntas sobre o que haviam aprendido que eu narrava com uma voz estridente, anunciando a vitória e derrota de times como: “Cebolas Borbulhantes” e “Truta das Quebradas” (o time que ganhava escolhia a próxima brincadeira). Integrei principalmente brincadeiras na educação, sim, porque cada vez mais compreendia o que era necessário para atingir o tal campo unificado. Comecei a levar em conta quatro aspectos- sempre de dentro pra fora- que serviam para representar o caminho da interdisciplinaridade e seus intermediários até atingir uma reflexão em seu meio.
O primeiro aspecto é a relação do campo unificado com o conteúdo; o segundo, do conteúdo com o professor, que no caso da comunidade, foi voltado para animais e expressões utilizadas na região ( já que não ia ensiná-los como dizer “tubarão” em inglês se aqui há apenas botos rosas e tucuxis); a terceira, a relação do professor com seus alunos (que por serem crianças, era baseado em brincadeiras, das quais também participava para me colocar em um lugar igual aos meus alunos: o de aparente inocência sobre todo o peso de guiar a si mesmo perante à um mundo em decomposição); e por fim, a dos alunos com seu meio ambiente. Era necessário a harmonia em todo o processo, pois tudo já fugia do meu controle até mesmo na minha relação direta com as crianças. Por exemplo: apesar do centro de atendimento ser cercado por uma das paisagens naturais mais pacíficas que já vi, com um lado exposto a as águas cálidas do rio Tapajós se encontrando com o verde vivo Igapó, e do outro, os centenas de ninhos dos pássaros Japiins envoltos em uma grande árvore na qual eles cuidam dos filhos de outras aves, a concentração das crianças era vagarosa e raramente estável. Muitas vezes, eu tinha que sentar em silêncio e esperar uns 10 minutos até eles se acalmarem a deixassem de chutar as garrafas de água dedicadas aos intervalos, rasgar as cartolinas com o conteúdo da aula, ou correr um atrás do outro derrubando todas as cadeiras. Diante desse comportamento, eu não tinha coragem de dizer uma palavra, pois pra mim era claro que aquilo era uma rara oportunidade de alívio dado a todo o peso que enfrentavam em seu dia a dia. O que me pesava, e sempre me fazia surgir dúvidas com relação ao meu método, era que desses aspectos, todos são interligados, portanto, a falta de proficiência e atenção à qualquer um gera uma deficiência em todos eles.
É preciso que o propósito de plantar e regar a semente seja o de cultivar a harmonia entre todas as fases. É preciso que esta seja a força principal na concepção do ensino para que a relação entre os quatro esteja sempre fluindo com a seiva do amor que formata todas as partes da árvore. É preciso que esta árvore seja sempre uma continuação da semente em primeiro lugar, desde sua raiz até seu mais alto galho onde a luz primeiramente a toca.
Se o nosso propósito não se perder no caminho até sua manifestação no mundo material, tudo o que precisamos já existe dentro de nós. Tudo isso é para dizer que este propósito existe independente de estarmos ou não dispostos a vê-lo. Todos temos a luz do conhecimento ilimitado, mas, para lembrar disso, os quatro aspectos precisam fluir em harmonia. Mesmo hoje, quando sobrevivemos de uma maneira disfuncional, esta luz sempre vai existir, apesar de tudo e todos que a tentam retirar- ela é a natureza, e a natureza é a Amazônia, e a Amazônia é tudo o que há. Como diz meu amigo Jorginho de Alter do Chão, o Pará é um roteador de cultura. Esta cultura de simplificação, que funciona em par com a natureza, é a própria fonte do conhecimento. Por isso, eu determinei que a minha semente é a autovalorização.
A autovalorização tem que existir para que os moradores da Amazônia possam desfrutar do seu próprio propósito e assim refleti-lo em seu meio ambiente. Portanto, a falta de proficiência no inglês, mesmo em comunidades que tem sua principal fonte de renda no turismo, não deixa de ser uma folha na nossa árvore. Para que os habitantes da Amazônia possam servir como exemplo de sua luta pela auto-valorização, é necessário que os recursos, tradições, e conhecimento que foram e são retirados do local possam voltar a funcionar como seu próprio sustento, e não para propagar a tentativa de extração da cultura e riqueza que sempre esteve aqui.
É só assim, com uma verdadeira harmonização de dentro para fora dos povos originários deste mesmo conhecimento, que a humanidade conhecerá a verdadeira abrangência do Plano Evolutivo que dita o curso do Universo desde o menor grão de areia até o todo que o engloba.
Mesmo com o tempo parecendo mais lento, o mês virou semanas, semanas, dias, e o dia virou a hora de ir, de se desfazer de estar semeando tudo bem assim, na raiz. Antes da última aula, fiz “certificados” de cartolina com o clássico, “my name is ____” incluindo o nome de todos os aluno, desenhos, e seguido de uma mensagem: “I graduated from teacher Tom”- o “kit” vinha enrolado um colar muiraquitã. Não estavam todos os alunos, aprendi que aqui não se falam muito em despedidas, pois nunca se despede de casa. Quando a aula acabou, já tínhamos descido ao nível térreo do centro de atendimento e também da êxtase da experiência em si. Eu estava prestes a dispensar meus queridos alunos, mas notei que na hora de acabar, era a primeira vez que tinha olhado no relógio em muito tempo, como se já estivesse pronto para seguir em frente. Na verdade, o que estava prestes a me permear de novo era o medo e a ansiedade. Não, aquele não era o fim, era apenas o começo, ou melhor, um reencontro. Foi aí que decidi chamar a todos novamente com um assovio semelhante ao dos japiim que nos acompanharam durante toda a jornada. Quase que prontos pra seguir em frente, todos se viraram: “Bora mais uma pira pega?”
Espero ter voado à altura de tudo que está neste universo da Amazônia, e que possa ter encontrado uma maneira de compartilhar meu propósito planando em meio a cultura dessas pessoas, para que assim, também possa representá-las daqui para frente, em todos os meios que me encontro. Desde sempre, nunca houve um caminho, e se houvesse, seria o de reconhecer o que sempre esteve aqui- o eterno retorno a todo nosso amor.
Antonio Volpato I Tom I Teacher Tom
Tom, que lindo texto! Professor que sempre aprende e continua ensinando, reverberando a busca da compreensão! Estou encantada com suas descobertas! Um beijo
Emocionante demais o texto, realmente é difícil explicar as coisas que a gente vivência por aqui. Quando mais nova eu cantava pra não esquecer das coisas que aprendia nas aldeias, hoje já consigo falar um pouco mas o choro chega rapido!